Carta Apostólica Spiritu et Sponsa


Carta Apostólica de João Paulo II sobre a Sagrada Liturgia

13/12/2003

Carta apostólica no quadragésimo aniversário da Constituição do Concílio Vaticano II «Sacrosanctum Concilium» sobre a Sagrada Liturgia firmada por João Paulo II em 4 de dezembro de 2003.



1. «O Espírito e a Esposa dizem: “Vem”. E o que escute, diga: “Vem”. E o que tenha sede, venha; e o que quer, tome de graça a água da vida» (Ap 22, 17). Estas palavras do Apocalipse ressoam em meu espírito ao recordar que há quarenta anos, exatamente em 4 de dezembro de 1963, meu venerado predecessor o Papa Paulo VI promulgou a constituição Sacrosanctum Concilium sobre a sagrada liturgia. Com efeito, o que é a liturgia senão a voz uníssona do Espírito Santo e da Esposa, a santa Igreja, que clamam ao Senhor Jesus: «Vem»? Que é a liturgia senão a fonte pura e perene de «água viva» à qual todos os que têm sede podem acudir para receber gratuitamente o dom de Deus? (cf. Jo 4, 10).


Verdadeiramente, na Constituição sobre a sagrada liturgia, primícia da «grande graça que a Igreja recebeu no século XX» (“Novo millennio ineunte”, 57; CF “Vicesimus quintus”, 1), o concílio Vaticano II, o Espírito Santo falou à Igreja, guiando sem cessar os discípulos do Senhor «para a verdade completa» (Jo 16, 13). Celebrar o quadragésimo aniversário desse acontecimento constitui uma feliz ocasião para redescobrir os temas de fundo da renovação litúrgica impulsionada pelos padres do Concílio, comprovar de algum modo sua recepção e olhar ao futuro.


Um olhar à Constituição conciliar

2. Com o passar do tempo, à luz dos frutos que produziu, se vê cada vez com maior clareza a importância da constituição Sacrosanctum Concilium. Nela se delineiam luminosamente os princípios que fundam a praxis litúrgica da igreja e inspiram sua correta renovação ao longo do tempo (cf. n. 3). Os padres conciliares situam a liturgia no horizonte da história da salvação, cujo fim é a redenção humana e a perfeita glorificação de Deus. A redenção tem seu prelúdio nas maravilhas que fez Deus no Antigo Testamento, e foi realizada em plenitude por Cristo nosso Senhor, especialmente por meio do mistério pascal de sua bem-aventurada paixão, de sua ressurreição dentre os mortos e de sua gloriosa ascensão (cf. n. 5). Contudo, não só é necessário anunciar essa redenção, mas também atuá-la, e é o que leva a cabo «mediante o sacrifício e os sacramentos, em torno aos quais gira toda a vida litúrgica» (n. 6). Cristo se faz presente, de modo especial, nas ações litúrgicas, associando a Igreja a si. Toda celebração litúrgica é, portanto, obra de Cristo sacerdote e de seu Corpo místico, «culto público íntegro» (n. 7), no qual se participa, pré-experimentando, na liturgia, da Jerusalém celestial (cf. n. 8). Por isso, «a liturgia é o encontro à que tende a ação da Igreja e, ao mesmo tempo, a fonte de onde emana toda sua força» (n. 10).


3. A perspectiva litúrgica do Concílio não se limita ao âmbito interno da Igreja, mas se abre ao horizonte da humanidade inteira. Com efeito, Cristo, em seu louvor ao Pai, une toda a comunidade dos homens a si, e o faz de modo singular precisamente através da missão orante da «Igreja, que não só na celebração da Eucaristia, mas também de outras formas, sobretudo recitando o Ofício divino, louva a Deus sem interrupção e intercede pela salvação do mundo inteiro» (n. 83).

A vida litúrgica da Igreja, tal como a apresenta a constituição Sacrosanctum Concilium, assume uma dimensão cósmica e universal, marcando de modo profundo o tempo e o espaço do homem. Desde esta perspectiva se compreende também a atenção renovada que a Constituição dá ao Ano litúrgico, caminho através do qual a Igreja faz memória do mistério pascal de Cristo e o revive (Cf. n. 5).


Se tudo isto é a liturgia, com razão o Concílio afirma que toda ação litúrgica «é ação sagrada por excelência cuja eficácia, com o mesmo título e no mesmo grau, não iguala nenhuma outra ação da Igreja» (n. 7). Ao mesmo tempo, o Concílio reconhece que «a sagrada liturgia não esgota toda a ação da Igreja» (N. 9). Com efeito, a liturgia, por uma parte, supõe o anúncio do Evangelho; e, por outra, exige o testemunho cristão na história. O mistério proposto na pregação e nas catequeses, acolhido na fé e celebrado na liturgia, deve modelar toda a vida dos crentes, que estão chamados a ser seus arautos no mundo (cf. n. 10).


4. Com respeito às diversas realidades implícitas na celebração litúrgica, a Constituição presta atenção especial à importância da “música sacra”. O Concílio a exalta indicando que tem como fim «a glória de Deus e a santificação dos fiéis» (n. 112). Com efeito, a música sacra é um meio privilegiado para facilitar uma participação ativa dos fiéis na ação sagrada, como já recomendava meu venerado predecessor são Pio X no motu proprio “Tra le sollecitudini”, cujo centenário se celebra este ano. Precisamente este aniversário me brindou recentemente a ocasião de reafirmar a necessidade de que a música, segundo as diretrizes da “Sacrosanctum Concilium” (cf. n. 6), conserve e aumente sua função dentro das celebrações litúrgicas, tendo em conta tanto o caráter próprio da liturgia como a sensibilidade de nosso tempo e as tradições musicais das diversas regiões do mundo.


5. Outro tema de grande importância, que se enfrenta na Constituição conciliar, é o que atém à “arte sacra”. O Concílio oferece indicações claras para que siga tendo, em nossos dias um espaço notável, de forma que o culto possa brilhar também pelo decoro e a beleza da arte litúrgica. Convém prever, com esse fim, iniciativas para a formação dos diversos maestros de obras artísticas, chamados a ocupar-se da construção e do embelezamento dos edifícios destinados à liturgia (cf. n. 127). Na base dessas orientações se encontra uma visão da arte, e em particular da arte sagrada, que põe em relação «com a infinita beleza divina, que se tenta expressar, de algum modo, nas obras humanas» (n. 122).

Da renovação ao aprofundamento

6. À distância de quarenta anos, convém verificar o caminho realizado. Já em outras ocasiões sugeri uma espécie de exame de consciência a propósito da recepção do concílio Vaticano II (Cf. Tertio millennio adveniente, 36). Esse exame não pode por menos de incluir também a vida litúrgico-sacramental. «Se vive a liturgia como “fonte e fim” da vida eclesial, segundo os ensinamentos da “Sacrosanctum Concilium”?» (ib.). O redescobrimento do valor da palavra de Deus, que a reforma litúrgica realizou, encontrou um eco positivo em nossas celebrações? Até que ponto a liturgia entrou na vida concreta dos fiéis como caminho de santidade, força interior do dinamismo apostólico e do espírito missionário eclesial?


7. A renovação conciliar da liturgia tem como expressão mais evidente a publicação dos livros litúrgicos. Depois de um primeiro período no qual se levou a cabo uma inserção gradual dos textos renovados nas celebrações litúrgicas, é necessário aprofundar nas riquezas e nas potencialidades que encerram. Esse aprofundamento deve basear-se em um princípio de plena fidelidade à sagrada Escritura e à Tradição, interpretadas de forma autorizada em especial pelo concílio vaticano II, cujos ensinamentos foram reafirmados e desenvolvidos pelo Magistério sucessivo. Essa fidelidade obriga em primeiro lugar os que, com o ofício episcopal, têm «a tarefa de oferecer à divina Majestade o culto cristão e de regularizá-lo segundo os mandamentos do Senhor e as leis da Igreja» (“Lumen gentium”, 26); nessa tarefa deve comprometer-se, ao mesmo tempo, toda a comunidade eclesial «segundo a diversidade de ordens, funções e participação atual» (“Sacrosanctum Concilium”, 26).


Desde esta perspectiva, segue sendo mais necessário que nunca incrementar a vida litúrgica em nossas comunidades, através de uma “adequada formação” dos ministros e de todos os fiéis, com vistas para a participação plena, consciente e ativa nas celebrações litúrgicas que recomendou o Concílio (cf. n. 14; “Vicesimus quintus”, 15).


8. Por conseguinte, faz falta uma pastoral litúrgica marcada por uma plena fidelidade às novas ordens. Através destes se veio realizando o renovado interesse pela palavra de Deus segundo a orientação do Concílio, que pediu uma «leitura da sagrada Escritura mais abundante, mais variada e mais apropriada» (n. 35). As novas lições, por exemplo, oferecem uma ampla seleção de passagens da Escritura, que constituem uma fonte inesgotável à qual pode e deve acudir o povo de Deus. Com efeito, não podemos esquecer que «a Igreja se edifica e vai crescendo pela audição da palavra de Deus, em outro tempo, na história da salvação, se fazem de novo presentes de um modo misterioso mas real, através dos sinais da celebração litúrgica» (“Ordo lectionum missae”, 7). Na celebração, a palavra de Deus expressa a plenitude de seu significado, estimulando a existência cristã a uma renovação contínua, para que «o que se escuta na ação litúrgica, também se faça logo realidade na vida» (ib. 6).


9. O domingo, dia do Senhor, no qual se faz memória particular da ressurreição de Cristo, está no centro da vida litúrgica, como «fundamento e núcleo de todo o Ano litúrgico» (“Sacrosanctum Concilium”, 106; cf. “Vicesimus quintus”, 22). Não cabe dúvida de que se realizaram notáveis esforços na pastoral, para conseguir que se redescubra o valor do domingo. Mas é necessário insistir neste ponto, já que «certamente é grande a riqueza espiritual e pastoral do domingo, tal como a tradição nos transmitiu. O domingo, considerando globalmente seus significados e suas implicações, é como uma síntese da vida cristã e uma condição para vivê-la bem» (Dies Domini, 81).


10. A vida espiritual dos fiéis se alimenta na celebração litúrgica. A partir da liturgia se deve aplicar o princípio que enunciei na carta apostólica “Novo millennio ineunte”: «É necessário um cristianismo que se distinga antes de tudo na arte da oração» (n. 32). A constituição “Sacrosanctum Concilium” interpreta profeticamente esta urgência, estimulando a comunidade cristã a intensificar a vida de oração, não só através da liturgia, mas também através dos «exercícios piedosos», com tal de que se realizem em harmonia com a liturgia, como se derivaram dela e a ela conduziram (cf. n. 13). A Experiência pastoral destas décadas consolidou essa intuição. Neste sentido, a “Congregação para o culto divino e a disciplina dos sacramentos” deu uma contribuição muito valiosa com o “Diretório sobre a piedade popular e a liturgia” (Cidade do Vaticano, 2002). Também, eu mesmo, com a carta apostólica “Rosarium Virginis Mariae” e com a convocação do Ano do Rosário, quis explicitar as riquezas contemplativas desta oração tradicional, que se consolidou amplamente no povo de Deus, e recomendei seu redescobrimento como caminho privilegiado de contemplação do rosto de Cristo na escola de Maria.


Perspectivas
11. Olhando para o futuro, são múltiplos os desafios aos que a liturgia deve responder. Com efeito, ao longo destes quarenta anos, a sociedade sofreu mudanças profundas, algumas das quais põem fortemente à prova o compromisso eclesial. Temos ante nós um mundo no qual, inclusive nas regiões de antiga tradição cristã, os sinais do Evangelho se vão atenuando. É tempo de “nova evangelização”. A liturgia se vê interpelada diretamente por esse desafio.


À primeira vista, parece ficar marginalizada por uma sociedade amplamente secularizada. Mas é um fato indiscutível que, apesar da secularização, em nosso tempo está emergindo de diversas formas uma renovada necessidade de espiritualidade. Isto demonstra que no mais íntimo do homem não se pode apagar a sede de Deus. Existem interrogantes que unicamente encontram respostas em um contato pessoal com Cristo. Somente na intimidade com ele cada existência cobra sentido, e pode chegar a experimentar a alegria que fez exclamar Pedro no monte da Transfiguração: «Mestre, que bom estarmos aqui!» (Lc 9, 33).


12. Ante este anseio de encontro com Deus, a liturgia oferece a resposta mais profunda e eficaz. O faz especialmente na Eucaristia, na qual se nos permite unir-nos ao sacrifício de Cristo e alimentar-nos de seu corpo e seu sangue. Contudo, os pastores devem procurar que o sentido do mistério penetre nas consciências, redescobrindo e praticando a arte «mistagógica», tão apreciada pelos Padres da Igreja (cf. “Vicesimus quintus”, 21). Em particular, devem promover celebrações dignas, prestando a devida atenção às diversas classes de pessoas: crianças, jovens, adultos, anciãos, deficientes. Todos se sentirão acolhidos em nossas assembléias, de forma que possam respirar o clima da primeira comunidade crente: «Eram assíduos ao ensinamento dos Apóstolos, na comunhão, na fração do pão e nas orações» (Atos 2, 42).


13. Um aspecto que é preciso cultivar com mais esmero em nossas comunidades é a experiência do silêncio. Resulta necessário «para conseguir a plena ressonância da voz do Espírito Santo nos corações e para unir mais estreitamente a oração pessoal com a palavra de Deus e a voz pública da Igreja» (“Institutio generalis Liturgiae Horarum”, 202). Em uma sociedade que vive de maneira cada vez mais frenética, com freqüência atordoada por ruídos e dispersa no efêmero, é vital redescobrir o valor do silêncio. Não é casualidade que, também além do culto cristão, se difundem práticas de meditação que dão importância ao recolhimento. Por que não empreender, com audácia pedagógica, uma educação específica no silêncio dentro das coordenadas próprias da experiência cristã? Devemos ter ante nossos olhos o exemplo de Jesus, o qual «saiu de casa e se foi a um lugar deserto, e ali orava» (Mc 1, 35). A liturgia, entre seus diversos momentos e sinais, não pode descuidar do silêncio.


14. A pastoral litúrgica, através da introdução nas diversas celebrações, deve suscitar o gosto pela oração. Certamente, há de fazê-lo tendo em conta as capacidades dos crentes, em suas diferentes condições de idade e cultura; mas tem que fazê-lo tratando de não contentar-se com o «mínimo». A pedagogia da Igreja deve «ser audaz». É importante introduzir aos fiéis na celebração da Liturgia das Horas, que, «como oração pública da Igreja, é fonte de piedade e alimento da oração pessoal» (“Sacrosanctum Concilum”, 90). Não é uma ação individual ou «privada, mas que pertence a todo o corpo da Igreja. (…) Portanto, quando os fiéis são convocados e se reúnem para a Liturgia das Horas, unindo seus corações e suas vozes, visualizam a Igreja, que celebra o mistério de Cristo» (“Institutio generalis Liturgiae Horarum”, 20.22). Esta atenção privilegiada à oração litúrgica não está em contraposição com a oração pessoal; ao contrário, a supõe e exige (cf. Sacrosantum Concilium, 12), e se harmoniza muito bem com outras formas de oração comunitária, sobretudo se foram reconhecidas e recomendadas pela autoridade eclesial (cf.ib., 13).


15. Para educar na oração, e especialmente para promover a vida litúrgica, é indispensável o compromisso dos pastores. Implica um dever de discernimento e guia. Isto não se há de ver como um princípio de rigidez, em contraste com a necessidade do espírito cristão de abandonar-se à ação do Espírito de Deus, que intercede em nós e «por nós, com gemidos inefáveis» (Rm 8, 26). Através da guia dos pastores se realiza mais um princípio de «garantia», previsto no plano de Deus sobre a Igreja e governado pela assistência do Espírito Santo. A renovação litúrgica levada a cabo nestas décadas demonstrou que é possível conjugar algumas normas que assegurem à liturgia sua identidade e seu decoro, com espaços de criatividade e adaptação, que a fazem próxima às exigências expressivas das diversas regiões, situações e culturas. Se não se respeitam as normas litúrgicas, às vezes se cai em abusos inclusive graves, que obscurecem a verdade do mistério e criam desconcerto no povo de Deus (cf. “Ecclesia de Echaristia”, 52; “Vicesimus quintus, 13). Esses abusos não têm nada a ver com o autêntico espírito do Concílio e devem ser corrigidos pelos pastores com uma atitude de prudente firmeza.


Conclusão
16. A promulgação da constituição “Sacrosanctum Concilium” marcou, na vida da Igreja, uma etapa de fundamental importância para a promoção e o desenvolvimento da liturgia. A Igreja, que, animada pelo sopro do Espírito Santo, vive sua missão de «sacramento, ou sinal e instrumento da união íntima com Deus e da unidade de todo o gênero humano» (“Lumen gentium”, 1), encontra na liturgia a expressão mais alta de sua realidade de mistério.


No Senhor Jesus e em seu Espírito, toda a existência cristã se transforma em «sacrifício vivo, santo e agradável a Deus», autêntico «culto espiritual» (Rm 12, 1). É realmente grande o mistério que se realiza na liturgia. Nele se abre na terra um resquício de céu, e da comunidade dos crentes se eleva, em sintonia com o canto da Jerusalém celestial, o hino perene de louvor: «Sanctus, sanctus, sanctus, Dominus Deus Sabaoth, Pleni sunt caeli et terra gloria tua.
Hosanna in excelsis!».


É preciso que neste início de milênio se desenvolva uma «espiritualidade litúrgica» que leve a tomar consciência de Cristo como primeiro «liturgo», o qual atua sem cessar na Igreja e no mundo em virtude do mistério pascal continuamente celebrado, e associa a Igreja a si, para louvor do Pai, na unidade do Espírito Santo.


Com este desejo, de coração envio a todos minha benção.

João Paulo II

Vaticano, 4 de dezembro do ano 2003, vigésimo sexto de meu pontificado.

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